Antes de Cabral e muito além

Pensando antes de as caravelas cruzarem o oceano em 1500, o Catimbó também pode nos levar a refletir sobre o comportamento e a condição humana

POR CLECYANE VIEIRA

Você já parou para pensar como os povos originários se comportavam antes da estrutura religiosa monoteísta e hierárquica imposta pelo Cristianismo por meio dos colonizadores? Para Reinaldo Lopes, autor do livro “1499: O Brasil Antes de Cabral” (2017), é importante reforçar a tremenda diversidade que já existia antes da chegada dos europeus.

“Existia uma variedade imensa de culturas, de organizações sociais e de grupos linguísticos no território que seria chamado de Brasil mais tarde. Então, não podemos pensar nunca em um conjunto de crenças que fosse uniforme,” conta o jornalista, destaque na área científica e colunista da Folha de S. Paulo, além de especialista em biologia e arqueologia.

Segundo Reinaldo, os grupos que descendem de sociedades pré-coloniais acreditam que conseguem transitar espiritualmente entre os reinos dos humanos, dos animais, das plantas e até mesmo de objetos que, para os descrentes, são inanimados. “Essa crença de que a condição humana não é estanque, não é fechada, mas que você consegue transitar e se relacionar com espíritos desses diferentes reinos, é bastante comum”, informa.

“A gente vê isso, inclusive, na arte pré-cabralina, da arte tapajônica da região de Santarém, no Pará, onde fica bem claro que as criaturas antropozoomorfas (figuras com características humana e animal) são figuras que parecem mostrar uma transição entre a condição humana e a condição animal, principalmente”, esclarece.

As figuras mencionadas por Reinaldo fortalecem a ideia de que temos outra alma, outra essência, a qual teria natureza animal. O jornalista menciona a teoria de Eduardo Viveiros de Castro, antropólogo que escreve sobre o perspectivismo ameríndio, defendendo que a relação de humanos com os outros seres vivos, em especial os animais, depende do ponto de vista de cada um.

A gente pensa neles como animais, mas eles olhando para a gente, são também como pessoas vendo outros animais. E quando eles estão em outro plano de existência, os animais se comportam como seres humanos com as suas aldeias, caciques e pajés. Ser humano depende da perspectiva, seja como gente ou como bicho,” conclui.

Essas crenças e práticas das sociedades pré-coloniais da América do Sul revelam uma cosmovisão em que humanidade e natureza são indiscutivelmente interligadas. Para além de especulações sobre esses cenários, hoje é possível identificar dinâmicas milenares de culturas originárias que trazem diversos conhecimentos, como, por exemplo, a visão de mundo de que a natureza é viva e responde a processos de cura usando plantas. 

Com este entendimento de uma interconexão profunda entre seres humanos e a natureza, identifica-se a complexidade das culturas originárias e suas contribuições para a compreensão do mundo e da espiritualidade. O emprego de substâncias enteogênicas, como a Ayahuasca e a Jurema, em rituais, não é somente para fins espirituais; elas também contêm propriedades medicinais. O que os povos originários já sabiam, a pesquisa científica vem descobrindo atualmente.

Medicina ancestral

Os povos originários sempre tiveram razão, e a ciência contemporânea sabe disso

O potencial terapêutico das substâncias enteogênicas, capazes de expandir a consciência, tem sido explorado pelo Dr. Dráulio Araújo, professor do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Desde 2005, o pesquisador lidera o primeiro estudo mundial sobre os efeitos da Dimetiltriptamina (DMT ou N,N-DMT), um dos principais componentes da Ayahuasca e da Jurema Preta, no tratamento da depressão.

Inicialmente, a pesquisa focou na Ayahuasca, investigando como a DMT impacta o cérebro e os sistemas inflamatório, de neuroplasticidade e de estresse, para entender seu potencial terapêutico no corpo humano. Nos últimos cinco anos, o estudo se expandiu para incluir a Jurema Preta, que contém uma concentração ainda maior da molécula. A pesquisa explora novos aspectos terapêuticos por meio da inalação ou de injeções intramusculares da substância pura, sem qualquer tipo de mistura, no tratamento de pacientes com depressão, resistentes a tratamentos convencionais.

Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) mostram que 5,8% da população brasileira, aproximadamente 11,7 milhões de pessoas, são afetadas pela depressão. Esse transtorno tem se tornado uma preocupação crescente, especialmente para aqueles que não respondem aos antidepressivos disponíveis na indústria farmacêutica. A atenção a esses indivíduos requer uma abordagem diferenciada e inovadora.

A ciência tem se voltado para manifestações originadas no campo espiritual para tentar compreender os mecanismos que expliquem os efeitos terapêuticos dessas substâncias. Considerando que os resultados obtidos até agora pela pesquisa do Dr. Dráulio sugerem que a DMT presente na Jurema Preta possui um efeito antidepressivo rápido e significativo, os avanços dessa investigação poderão oferecer alternativas de alívio a milhões de brasileiros que sofrem dessa condição.

Mesmo que involuntariamente, a pesquisa representa uma sinergia entre a medicina psicodélica e o conhecimento ancestral utilizado há milênios em práticas xamânicas. Esse diálogo entre tradições antigas e a pesquisa científica contemporânea valida o conhecimento indígena e amplia as opções terapêuticas para aqueles que sofrem de condições difíceis de tratar, como a depressão resistente.

A cura faz parte da essência do Catimbó. Fruto de um longo processo de transformação cultural presente em algumas comunidades indígenas e áreas rurais do Nordeste, o Catimbó pretende, como principal papel, curar os doentes e auxiliar na resolução de problemas cotidianos, como doenças e questões amorosas, por exemplo.

Wilkflane Azevedo, indígena da comunidade Tapuia Tarairiú da Lagoa do Tapará/RN, lembra que, quando criança, era comum as pessoas sofrerem de tristeza e procurarem os sábios mais antigos que entendiam sobre a manipulação das ervas para tratar o “desgosto”, termo utilizado para referenciar a depressão. Atualmente, curandeiras dos interiores do Nordeste brasileiro mantêm a cultura de curas com ervas e rezas específicas para quebra de mau-olhado, espinhela caída e outros males.

Essa cultura é complementada com o fornecimento de chás naturais, como a mistura do suco de limão, gengibre e alho, comum para a cura de resfriados, e lambedores para tratamento de tosse, remédios caseiros feitos com a mistura de plantas, frutas e açúcar ou mel. “Fico muito feliz quando a pessoa me fala que melhorou das suas dores depois do remédio que passei a elas. Mas, precisa seguir à risca para dar efeito”, conta Wilkflane. As curandeiras, majoritariamente mulheres anciãs, religiosas ou não, têm o dom de manipular ervas em prol do tratamento de mazelas.

Outra prática muito comum é o banho de ervas ofertado em casas de axé, que encontrei também na Casa do Ouro. Nesse ritual, as plantas são esfregadas em água fria, coadas, e a infusão é utilizada para banhar o corpo do pescoço para baixo, sempre mantendo pensamentos positivos. Cada planta possui um poder único, por isso não é recomendado fazer o banho sem a orientação de um juremeiro que tenha a sabedoria ancestral. “Em nossa Casa, existe um fluxo muito grande de pessoas que nos procuram, quando a medicina convencional já não consegue resolver seus anseios, através de banhos de ervas, benzimentos e orações”, explica Pai Eduardo.

A cultura de procurar casas de Catimbó ou só aquela pessoa específica que tem o domínio da oração é muito presente no Nordeste. Esta que vos escreve, quando criança arteira, como dizia minha mãe, cambaleava para casa de dona Perolina, que, quando faleceu, passou a tarefa de me salvar da espinhela caída para dona Maria do Carmo. Nas vezes que fui atendida, não houve uma sequer que não me erguia do banquinho de madeira na tentativa de aproximar as orelhas um pouco mais perto para entender as palavras que saiam de suas bocas.

Aquelas senhoras tinham a característica de falar baixinho, parecia até pecado falar alto. Um segredo guardado no fundo do guarda-roupa, isso porque elas sempre tinham aquele caderno pequeno e fino com letras garranchudas que só elas entendiam. Letra de dotô, sabe?

Muitas mães desenganadas procuravam essas senhoras para curar o pigarro grudado no peito dos filhos. Nesses casos mais graves, só lambedor feito de um monte de cascas e plantas acompanhado da reza forte para dar jeito. E dava certo! Afirmo porque eu mesma era paciente delas. Só sei que nas casas dessas senhorinhas havia alicerce espiritual, benzimento, boas histórias e, no fim, ainda ganhava bolo e café feitos na hora. Quem não saísse melhor do que quando entrou estava mentindo. Não sei se elas sabiam, mas aquilo que elas faziam era Catimbó.

No Catimbó, a gente aprende que, quando se bate à porta de uma casa, não podemos jamais deixá-la fechada”, diz Pai Eduardo.

Essas práticas ancestrais e os conhecimentos associados a elas possuem poucos registros escritos, o que ressalta ainda mais a importância de proteger as comunidades de terreiros e indígenas.

Dentro dos muros acadêmicos

O Catimbó, quando é bom de verdade, vira pesquisa científica

Há quem queira conhecer e pensar, de fato, sobre o que é praticar o Catimbó em uma sociedade ainda racista e preconceituosa, como o antropólogo e professor titular do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Luiz Assunção. Sua trajetória é marcada por uma pioneira dedicação ao estudo relacionado ao Catimbó Jurema no âmbito da UFRN, destacando temas frequentemente ignorados ou desprezados.

Os motivos que o levaram a abraçar o Catimbó como campo de estudo foram exatamente olhar para onde ninguém olhava. Desde os anos 1980, Assunção se empenha em trazer à luz questões ligadas às populações afro-brasileiras e suas expressões culturais, com foco em memória, oralidade e patrimônio.

Seu interesse pelo Catimbó começou com sua pesquisa de mestrado em comunidades quilombolas, especificamente na Comunidade Negra do Riacho, em Currais Novos/RN. Em 1988, durante um projeto no Museu Câmara Cascudo, Assunção teve seu primeiro contato com peças importantes do Catimbó, como o cachimbo, e conheceu Pai Chico de Xangô, líder religioso que o ensinou sobre o significado dos objetos do Catimbó expostos no museu.

Interessado em aprofundar seus conhecimentos, Assunção começou a frequentar a casa de Pai Chico, realizando entrevistas e discussões, o que o levou a conhecer outros líderes religiosos como Babalorixá Karol e Pai Geraldo Guedes. Ele visitou terreiros, participou de rituais e aprendeu diretamente com os praticantes. A oralidade e o aprendizado com os juremeiros foram cruciais para a construção desse saber.

Luiz Assunção desenvolve pesquisas sobre Catimbó há décadas

Foto: Cleciane Vieira

Para sua tese de doutorado, Assunção seguiu o roteiro feito pelo escritor modernista Mário de Andrade nos anos 1920, explorando o Catimbó no Ceará, Paraíba e Piauí. Essa pesquisa resultou no livro “O Reino dos Mestres: A Tradição da Jurema na Umbanda Nordestina”, na qual concluiu que mestres, mestras e caboclos são entidades principais do ritual. “Não existe Jurema sem mestres e sem caboclos. A Jurema se caracteriza pela existência da planta, da bebida, do fumo e das entidades mestres e caboclos. Esse é o conjunto que forma o Catimbó Jurema”, afirma.

A trajetória de Luiz Assunção alude como o Catimbó, quando estudado de forma profunda e respeitosa, pode expor uma riqueza de conhecimento sobre culturas populares e religiosidades, contribuindo para a valorização dessas práticas.

Pontos eternizados

Desde tempos imemoriais, boas histórias são eternizadas em canções, e o Catimbó também se expressa por meio da arte

Durante o encontro com Luiz Assunção, este senhor risonho e contador de histórias me presenteou com o CD Pontos de Jurema. Esse momento evocou lembranças do aparelho de som laranja e branco que minha mãe me deu de aniversário aos 15 anos. Com certeza, eu passaria horas ouvindo esse CD e ficaria triste ao vê-lo arranhar de tanto tocar.

Luiz contou como aconteceu a produção desse CD, que registra a manifestação sonora do Catimbó no Rio Grande do Norte e reverencia a memória de importantes juremeiros como Babalorixá Karol, Pai Geraldo Guedes, Pai Geraldo do Caboclo e Pai José Clementino.

Inicialmente, as gravações e edições foram realizadas em um estúdio temporário no Teatro Municipal Sandoval Wanderley, em Natal/RN, em colaboração com comunidades de terreiros. Posteriormente, um estúdio móvel foi levado a alguns terreiros, como o de Babalorixá Karol, que estava doente, para gravações adicionais. A partir dessas sessões, o repertório final do CD foi definido, eternizando vozes e cantos desses mestres.

Se você for familiarizado com o Catimbó, ao ouvir o CD, perceberá que o repertório inclui cânticos emblemáticos como “Jurema, pau de ciência” e “Jurema, pau sagrado”. O trabalho ganhou uma versão digital há oito anos, e alguns pontos do álbum foram publicados no canal Art Macumba no YouTube, administrado pelo Ogã Davi D’Oxóssi.

Baseada nessa produção, descobri que o escritor e fundador do Modernismo, Mário de Andrade, visitou Natal em 1929 para realizar um levantamento etnomusicológico, registrando clássicos de catimbozeiros da época em seu livro “Música de Feitiçaria do Brasil”, lançado em 1963. Para quem não sabe, entre suas vastas competências, Mário de Andrade era também musicólogo.

No álbum “Potiguar” (2020), da Orquestra Sinfônica do RN, encontrei a faixa “Suíte Encantaria”, com arranjos de Gil Jardim e Naná Vasconcelos, que transmite a melodia dessa contribuição do modernista em terras natalenses. Mergulhe nesta obra-prima você também:

A narrativa do Catimbó Jurema é uma tapeçaria rica e complexa, com raízes profundas que se estendem até o presente. A partir dos estudos e da preservação dessas tradições, nosso entendimento cultural é enriquecido. Seja na história do Brasil, na ciência, na academia, na arte ou na religião, o Catimbó Jurema faz parte integral da cultura brasileira e merece ser conhecido e respeitado.