Objetos como chocalhos, cachimbos, colares feitos de sementes e vasilhas de barro, todos confeccionados com materiais da natureza, são logo percebidos nas casas de Catimbó e chamam atenção de curiosos. Na Casa do Ouro, notei uma gama de artefatos considerados sagrados que integram a estrutura dessa prática religiosa.
Embora muitos desses objetos só tenham se incorporado ao Catimbó após o sincretismo religioso com o Candomblé, o Catolicismo popular e as práticas ibéricas, três elementos são autênticos ao Catimbó: o cachimbo, a fumaça e a planta Jurema. Do cachimbo se faz a fumaça, e ambos detêm parte do segredo que Pai Léo chama de “ciência fina”. Fumaça é movimento e está presente em tudo. “Vai fumaça para onde eu mandar” é o que diz um rezo autoexplicativo do Catimbó.
É fumando o cachimbo que o catimbozeiro alcança seus desejos. Trazendo ou levando, lança a fumaça na direção do que é preciso ser solucionado para a resposta chegar. A fumaça também pode ser notada com frequência em defumações nos cultos, afastando energias ruins. Defumação nada mais é que ervas queimadas para purificação.
Após as influências, alguns componentes foram adicionados, como os tambores e membranofones, conhecidos como ilus. Além dos objetos litúrgicos utilizados, a Princesa e o Príncipe também fazem parte da estrutura do Catimbó. A Princesa é representada por vasilhas redondas de vidro ou de louça, onde é preparada a bebida sagrada e onde, em ocasiões específicas, são oferecidos alimentos aos encantados. O Príncipe é representado por taças ou copos, normalmente cheios de água ou outra bebida. A Princesa, especificamente, simboliza o portal espiritual da Jurema Sagrada.
Hoje, esses símbolos são frequentemente notados na cerimônia ritual mais comum, o Toque de Jurema, sessão pública destinada à consulta verbal às entidades durante o transe mediúnico. Outra cerimônia ritualística importante é a Mesa de Jurema, realizada em sessões privadas ou durante festas públicas de consagração dos juremeiros, sem consultas, destinada às comemorações.
Para confeccionar bancos, maracás, quartinhas (posso compará-las a garrafas para encher com água) e assentamentos (lembra tigelas e serve para colocar os alimentos ofertados às entidades em rituais), usa-se barro, cascas e troncos de árvores. No Catimbó, as sementes transformam-se em uma espécie de colar, nomeado de “contas”, também usadas nos maracás, ornamentando o instrumento e dando vida aos pontos cantados sonoramente.
A terra também é aproveitada e transformada em arte. A geotinta, técnica pré-histórica muito usada por indígenas, utiliza a terra para fazer tinta, combinando aglutinantes naturais com diversos tipos de solo. Wilkflane Azevedo, também conhecida como Akriptzé, que significa Filha da Mata, indígena da comunidade Tapuia Tarairiú da Lagoa do Tapará, situada na região metropolitana de Natal, capital do RN, explica que, “com respeito, tudo da natureza pode ser aproveitado. Da Jurema, por exemplo, usamos tudo, da raiz até às folhas”.
Akriptzé não vê os elementos do Catimbó como peças de arte, mas como anciões com a espiritualidade viva. Ela acrescenta que, na cultura catimbozeira indígena, não se empresta certos adornos, como o cocar, pois eles vibram a energia de quem o usa. O mesmo cuidado é aplicado ao maracá. “Mora um encantado em nosso maracá. O encantado é uma pessoa que já se foi, podendo ser seu parente ou não. Se o maracá quebrar, não podemos mais usá-lo, pois seu tempo de vida chegou ao fim e precisamos enterrá-lo”, explica.
Uma das curiosidades reveladas por Akriptzé é a possível existência de uma “Jurema traçada” em Macaíba, embora a localização exata seja desconhecida. Esse fenômeno acontece quando as plantas Jurema Preta e Jurema Branca crescem no mesmo solo e se entrelaçam, tornando-se uma só.
Essa informação chegou até ela por meio do Mestre Manuel Germano, espírito que se manifesta com sotaque português em seu Matruqueiro líder de Catimbó. Mestre Germano também explicou que o encontro natural das seivas dessas plantas pode resultar em um ritual ainda mais poderoso, devido ao potencial energético dessa combinação para o Catimbó, e teme que esse conhecimento caia nas mãos de pessoas com má índole.
Em suas experiências, Akriptzé relata que, para beber a Jurema, primeiro se toma uma bebida feita de Arruda Síria em pequenas quantidades. Essa combinação auxilia na expansão da consciência, permitindo obter respostas ou vivências em mundos paralelos. “Precisamos fazer o jejum adequado para receber a medicina. Devemos evitar, por exemplo, comer coisas gordurosas, como chocolate, antes de beber Jurema, porque podemos ter reações adversas, e a medicina da erva não vai agir como deveria”, alerta.
Akriptzé me apresenta uma diversidade de sementes coloridas, mas com a mesma estrutura, da árvore Mucunã que, segundo ela, possui nove espécies diferentes. Conta ainda que essa semente foi essencial para matar a fome de seu povo durante os períodos de seca. Embora a casca da semente seja dura, seu interior é composto por amido, capaz de alimentar após um processo de troca de água para dissolver seu amargor. A casca, após amolecer no processo, pode ser ralada e transformada em beiju, alimento milenar indígena.
A gastronomia ancestral também ensina a importância da preparação do alimento para a refeição coletiva, mostrando que o cuidado e o respeito pelo alimento se refletem no aproveitamento integral de cada parte. Hoje, essa cultura também é mantida na Casa do Ouro. Após as celebrações, é costumeiro oferecer refeições aos visitantes e integrantes da Casa, em um momento específico, para que todos se nutram juntos. Diversas vezes, encontrei pessoas comendo com as mãos, para intensificar a conexão com o alimento.
Sementes de mucunã
Foto: Cleciane Vieira
Tais práticas e conhecimentos possuem poucos registros, o que ressalta ainda mais a importância de proteger as comunidades de terreiros e indígenas. Se a última pessoa com vivência ativa no Catimbó Jurema perecer e não passar adiante seus conhecimentos, parte da história do país será enterrada junto, representando uma perda incalculável de conhecimento, diversidade, tradição e cultura.
Religião não se limita a crer no invisível; religião é conhecimento colocado em prática; é servir o outro
A comunidade da Lagoa do Tapará realiza frequentemente eventos culturais abertos ao público em seu espaço, chamado Tapera Arte Cultural. Escolas públicas, pesquisadores e entusiastas buscam participar de rodas de conversas, feiras culturais e experiências únicas no local. Além disso, as artesãs e responsáveis pelo ambiente, Akriptzé e Dona Benedita, produzem maracás e bonecas de pano para compartilharem com o mundo a cultura nordestina e indígena.
A sociedade sempre foi um ponto de atenção também para a Casa do Ouro. Anualmente, em setembro, participam de desfiles cívicos e, frequentemente, cedem o espaço do Ilê para universitários realizarem pesquisas, escolas os visitarem, psicólogos desenvolverem dinâmicas e oficinas. Além disso, é comum receberem convites para palestrar em universidades e escolas públicas, levando a mensagem de que as religiões de matriz africana e ameríndia existem e persistem.
“Buscamos sempre nos manter alinhados à educação de base e universitária, assim como ter relações harmoniosas com autoridades locais, vizinhos e comunidade para que todos entendam que a nossa religião é um núcleo assim como as demais. É comum nos encontrarem nas ruas com as nossas indumentárias, vestidos de axé, mas nem sempre o respeito encontra a gente. Também sofremos com alguns olhares, falas, movimentos,” lamenta Pai Eduardo.
“O Brasil é um país que abriga um leque enorme de religiões, e a nossa é uma das mais estigmatizadas. Acredito que 90% dos casos de crime contra as religiões são contra as de matriz africana e, infelizmente, enfrentamos essa realidade. Já tentaram impedir uma festa nossa chamando policiais, já colocaram cartazes de outras denominações religiosas em nossa porta. Já entraram aqui no terreiro para tentar converter o nosso fundador. Já sofremos agressões nas ruas. Fomos alvos de chacotas. Vimos rostos sendo torcidos. Eu e minhas irmãs sofremos bullying na escola e enfrentamos tudo isso sem acompanhamento psicológico, mas com muita resistência,” lembra Pai Léo.
Um levantamento feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2010, analisou o crescimento da diversidade dos grupos religiosos no Brasil e constatou mais de um milhão de adeptos das crenças afro-brasileiras.
Contudo, o anúncio divulgado pelo site oficial do Governo Federal do Brasil, em 21 de janeiro de 2024, destacou um aumento significativo nas violações relacionadas à intolerância religiosa no país, de acordo com levantamento do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC). Entre 2022 e 2023, as violações motivadas por intolerância religiosa cresceram 80%, totalizando 2.124 casos relatados em 2023. Os estados mais afetados foram São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia, com as religiões de matriz africana sendo as mais impactadas.
A Ouvidoria, em complemento ao anúncio, enfatizou a denúncia como um meio eficaz de combater a impunidade. A coordenadora-geral de Promoção da Liberdade Religiosa, Iyá Gilda de Oxum, destacou que a divulgação do canal de denúncias contribuiu para a visibilidade dos casos. Entre as ações em curso, estão a recriação do Comitê Nacional de Respeito à Liberdade Religiosa e a oferta de cursos de capacitação sobre diversidade religiosa.
A liberdade religiosa é um direito fundamental garantido pela Constituição Federal de 1988, especificamente no artigo 5º, que contém 77 incisos. Desde a Proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, o Brasil adotou o laicismo, assegurando que o governo não imponha religião à nação, nem restrinja a liberdade de crença.
Portanto, todo cidadão brasileiro tem o poder de decisão sobre seguir seus próprios dogmas, participar ou não de grupos religiosos, assim como o livre arbítrio de não ter crenças, ou seja, qualquer um tem o direito de ser ateu sem sofrer constrangimentos.
Em janeiro de 2023, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a lei que equipara o crime de injúria racial ao crime de racismo, protegendo a liberdade religiosa. Desde então, a lei prevê pena de dois a cinco anos para quem interromper, impedir ou empregar violência contra manifestações ou práticas religiosas.
“Quando crianças, a palavra ‘bullying’ não era citada e não existiam leis a nosso favor. Então, o que podíamos fazer era se apegar à nossa fé e aos familiares para tentar defender o nosso nome e a nossa religião. Na época, precisávamos revidar com agressão verbal, atitude que, hoje, não recomendo,” aponta Pai Léo. Ele lembra que, hoje em dia, é possível enfrentar o racismo religioso e a intolerância buscando as medidas cabíveis contra qualquer ato de violência.
“Conscientizamos todos os filhos que sejam firmes ao presenciarem algum ato parecido ou se forem vítimas. Orientamos também a procurarem a delegacia mais próxima e abrir uma ação judicial contra os agressores,” esclarece. Ele ressalta que, como cidadãos, devemos a todo custo estar vigilantes e se opor contra a indiferença e o racismo religioso, provocando constantemente a conversa educativa sobre diversidades.
A 1ª edição da cartilha produzida pela Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIRE), em novembro de 2023, ressalta que “A cultura do Diálogo Inter-Religioso é o caminho consciente de uma sociedade solidária, democrática e justa”. Alinhado a esse sentido, há nove anos é realizado o Encontro dos Juremeiros do Rio Grande do Norte, evento responsável por fortalecer o diálogo e a educação como a melhor possibilidade de a sociedade compreender e valorizar a tradição catimbozeira, frequentemente marginalizada pelo discurso hegemônico.
Os encontros oficiais começaram em 20 de janeiro de 2015, em Extremoz, região metropolitana de Natal/RN, sendo idealizado pelo juremeiro Dênis, conhecido como Ajimudá. o Encontro dos Juremeiros do Rio Grande do Norte tem como objetivo fortalecer a comunidade juremeira na sociedade, colocando as religiões ameríndias em destaque, promovendo debates que ganham força social e ampliando o alcance desse conhecimento. Formalizado em cartório, o evento tornou-se pioneiro no estado potiguar, inspirando outras iniciativas, como o Encontro de Juremeiros de Natal.
“Esse encontro é uma grande homenagem ao Rei Canindé, esse é o verdadeiro sentido desse evento. O primeiro foi realizado na mata, em baixo de um pé de jurema, por trás do Conjunto Santa Célia, em Extremoz”, relata Ajimudá.
Por quase seis anos, os encontros ocorreram nesse local. Posteriormente, passaram a ser realizados na Aldeia Guajiru, também em Extremoz. “A cada ano, nosso evento vem crescendo. Nos últimos dois anos, tivemos um dia inteiro de palestras, apresentações culturais, encerrando com um grande Toré”, lembra Ajimudá.
Os encontros anuais acontecem no terceiro domingo de janeiro, com reuniões adicionais em julho, mês dedicado às celebrações juremeiras. Durante esses encontros, a sociedade é convidada a conhecer a riqueza da Jurema e a se fortalecer com cânticos que ressoam como orações. Participei de dois desses eventos, registrando momentos para entender melhor a sua importância: um em 2023, na Fundação Aldeia Guajiru, em Extremoz, e outro em 2024, na Fundação Cultural Capitania das Artes (Funcarte), em Natal.
Entre experiências gastronômicas e feiras culturais, um grande círculo humano é formado, convidando todos a dançar e cantar. As vozes penetrantes vibram no ambiente, causando arrepios e sorrisos espontâneos. No encontro de Extremoz, em 2023, uma apresentação contou a história da união entre os povos indígenas e africanos, lembrando que, muito antes da chegada de Cabral, essas terras já abrigavam milhares de tribos indígenas, cada uma com suas práticas espirituais. A ideia reforça que o Catimbó Jurema é uma das práticas religiosas mais antigas e originárias do Brasil.
O encontro no Rio Grande do Norte foi fortemente influenciado pelo Kipupa Malunguinho, considerado o maior Encontro Nacional dos Juremeiros, realizado em Recife. “Kipupa é um nome Bantu e significa reunião de pessoas em adoração a uma única entidade”, explica Pai Arthur, padrinho da Casa do Ouro e um dos coordenadores religiosos do Kipupa, celebração que completará 20 anos em setembro de 2024.
O Kipupa nasceu a partir da necessidade de reverenciar os Reis Malunguinho. Assim mesmo: Reis, no plural, e Malunguinho no singular.
“Não existiu só um Malunguinho, é por isso que falamos Reis Malunguinho. Malunguinho era um título dado ao líder do Quilombo do Catucá, em Recife. O último Malunguinho da história foi João Batista, morto em 18 de setembro de 1835, o que decretou o fim do Quilombo”, conta o juremeiro. Conhecido por suas habilidades de guerrilha e resistência contra o poder local, Malunguinho e seus seguidores, os Malungos, lutaram pela liberdade e justiça dos desprotegidos, utilizando táticas engenhosas para defender seus territórios.
Na memória dos catimbozeiros, Malunguinho é lembrado por libertar escravizados e ser temido pelos escravocratas. Após ser ferido em uma emboscada, foi encontrado e curado por indígenas, que lhe ofereceram a cura através do poder medicinal das plantas. Talvez pela curiosidade ou instinto de sobrevivência, Malunguinho aprendeu a manipular ervas para curar a si mesmo e ao seu povo.
Sua habilidade em libertar os necessitados, abrindo cadeados de cativeiros de forma inexplicável, lhe rendeu a reputação de possuir uma “chave mágica”. Após sua passagem espiritual, foi acolhido pela Jurema Sagrada e se tornou “o grande chaveiro dos portões sagrados da Jurema, sendo responsável por quem entra e sai dos reinos sagrados”, afirma Pai Arthur.
Nos terreiros, sua chegada é saudada com “Sobô Nirê, Mafá” ou “Sobô Nirê, Malunguinho”. Ele pode se apresentar como Mestre, caboclo ou exu, configurando uma divindade polissêmica. Na Casa do Ouro, Malunguinho se manifesta como caboclo de frente do juremeiro Pai Léo e ancestral da família Alcântara. Esse mesmo espírito trabalhava no médium e saudoso Dedé Macambira, pai de Pai Léo.
Reis Malunguinho é visto como um herói e protetor de seu povo. Sua imagem simboliza resistência, resiliência e o poder da cura, sendo fonte de inspiração e força para a comunidade juremeira. Sua história, enraizada na luta pela liberdade e justiça, é um lembrete da capacidade de superação e união dos povos indígenas e africanos. A reverência a Malunguinho nos terreiros e nos encontros dos juremeiros mantém viva a memória e os ensinamentos daqueles que dedicaram suas vidas à proteção e ao bem-estar de suas comunidades.