Okê, Cidade. Okê, Ciência!

Os Reinos Encantados abrigam divindades detentoras da ciência ancestral e nos fazem refletir sobre como é organizado o mundo espiritual

POR CLECYANE VIEIRA

O mundo singular do Catimbó Jurema nos instiga a tentar compreender o que são os ditos Reinos Encantados, Cidades Encantadas e Ramas. Em minha estadia na Casa do Ouro, compreendi, de forma didática, que os reinados seriam como países; as cidades, como o próprio nome diz, assemelham-se aos municípios desses países; e as ramas seriam as famílias que vivem sendo formadas por grupos juremeiros. A organização me recordou as Colônias da doutrina Espírita, descritas por André Luiz, mentor espiritual de Chico Xavier, como a “Nosso Lar”, apresentada em filme de mesmo nome, lançado em 2010.

Dentre os três, os mais mencionados são os Reinos Encantados, que totalizam sete: Juremá, Vajucá, Manacá, Angico, Catucá, Junco e Aroeira, governados por diferentes entidades espirituais. Juremá, por exemplo, é o maior e principal reino, sendo governado por Tupã, muito associado à imagem do Deus cristão, e por Tamain, deusa associada à imagem de Nossa Senhora das Montanhas, e são duas das principais referências da mitologia indígena.

Na crença catimbozeira, as cidades são habitadas por encantados, curandeiras, mestres, caboclos e outras figuras que já viveram como eu e como você, aqui neste plano material. Elas não são lugares físicos que podemos visitar como em um mundo terreno, mas sim dimensões espirituais acessíveis por meio de cultos religiosos, usando elementos como a fumaça e o vinho feito com cascas e raízes da planta Jurema. Beber esse vinho pode levar a transcender a experiência espiritual e a mentalidade humana para o mundo espiritual em busca de conselhos para sua própria evolução e vivências incomuns, como participar espiritualmente do processo de cura de alguém, seja esse alguém vivo ou morto.

É incerto afirmar exatamente quem eram (ou são) esses seres espirituais. Ao que se sabe, dentro do que é contado por esses próprios espíritos, alguns mestres e mestras eram sertanejos, boiadeiros, camponesas, “mulheres da noite”, curandeiras e pessoas da realeza. Já os caboclos são constantemente associados à identidade indígena e ao conhecimento de ervas e raízes encontradas na natureza. Ambas as categorias espirituais são muito procuradas para prestarem consultas aos desconsolados.

Quando essas entidades vêm trabalhar, acontece a mediação entre essas energias, a mente e corpo do médium, chamado de “cavalo”, alinhando-se aos seus chakras para que seu espírito compreenda o intermédio e dê espaço à entidade, havendo assim a conexão e interação necessárias. Outro ponto importante é que, para a incorporação ter sucesso como esperado, há um comum acordo entre a pessoa que empresta seu corpo e o espírito, havendo confiança entre ambos. Na possessão, não há respeito às escolhas do médium, tampouco livre-arbítrio. Portanto, o termo correto a ser utilizado é “incorporação” ou “manifestação”.

Como aprendi na Casa do Ouro, o Catimbó abriu espaço a algumas entidades da Umbanda, principalmente os pretos-velhos, espíritos que vêm em forma de anciões, conhecidos também como vovós e vovôs. Ainda na época da colonização, as pessoas escravizadas e indígenas uniram forças no Catimbó e, atualmente, trabalham juntos na magia, apresentando-se nos cultos religiosos como pretos-velhos e caboclos.

Personagem que também é um exemplo da complexidade dessa fusão é Zé Pelintra, uma das entidades mais conhecidas, sendo considerado um Exu na Umbanda carioca, mas, no Catimbó do Nordeste, é um Mestre muito amado e respeitado. O Matruqueiro Pai Arthur lembra, com muita calma na voz, quando sua avó, devota de Zé Pelintra, acionava o considerado amigo para auxiliar as pessoas que precisavam de orientação. “Meu coração ficava pequenininho, escondido atrás da porta, vendo ela nos pés da imagem dele, dizendo:

Ôh, Zé, aquele menino tá numa situação difícil, como o senhor deixou isso acontecer? Se o senhor não resolver o problema, o que ele vai dizer do senhor, Zé? O senhor cuide em ajudar’”

O Matruqueiro afirma que, no dia seguinte, o pedido de sua avó estava resolvido e o problema do tal menino, solucionado. “Minha avó foi uma grande juremeira que deu seguimento ao que aprendeu com sua mãe, que aprendeu com a mãe dela. Na Jurema, é necessário ancestralidade, porque ninguém dá o que não tem, só se dá o que tem”, diz.

A Jurema é um pau sagrado onde Jesus orou

Se pensarmos em sincretismo, Jesus deu poder ao Catimbó

As tradições orais desempenham papel significativo nas comunidades que praticam o Catimbó, transmitindo ensinamentos e lendas ao longo das gerações. Uma dessas lendas remonta ao período em que a Virgem Maria, segundo a crença catimbozeira, descansou sob um pé de Jurema enquanto escondia o menino Jesus de Herodes.

Após o contato com Jesus, a planta ganhou sabedoria espiritual, sendo atribuída a ela conhecimentos e poderes místicos. Posteriormente, os indígenas tornaram-se detentores desse conhecimento, e a planta passou a ser reverenciada como símbolo central nas práticas do Catimbó, fornecendo-se integralmente para a produção do licor chamado Jurema Sagrada.

A história, que se conecta à imagem da Virgem Maria e de Cristo, reflete a sincretização de elementos do Catolicismo popular nas práticas do Catimbó, como o uso de rosários e imagens de santos católicos, além de atos de conexão com o sagrado, como as orações e algumas crenças. Embora essa lenda não tenha base histórica escrita, ela ilustra a maneira como as tradições religiosas adaptam-se e evoluem ao longo do tempo, incorporando narrativas que fortalecem sua identidade cultural por meio da oralidade.

Planta Jurema Preta
Foto: Cleciane Vieira

Quem tem gogó, canta e conta

No Catimbó, letras de pontos musicais revivem cenas do passado de espíritos juremeiros

Rezo, ponto, cantiga, toada, todas essas palavras, na linguagem catimbozeira, são sinônimos de música. Em qualquer religião, é comum haver cânticos para louvar deuses e crenças. No Catimbó, não é diferente. Mas, há um motivo a mais que torna essas músicas ainda mais interessantes.

“As cantigas rememoram o mundo dos nossos antepassados, que é o que nos fez ser o que somos hoje. Eu costumo dizer que a soma sonora dessas cantigas, desses ritos, traz forças ancestrais que harmonizam o terreiro, que harmonizam a gira e que nos elevam como seres humanos e juremeiros”, festeja o juremeiro Pai Eduardo.

Os pontos cantados traçam as possíveis histórias de entidades que compõem o Catimbó. São histórias que resgatam memórias de suas vidas enquanto pessoas vivas de carne e osso. A lenda que interliga a imagem de Cristo à árvore Jurema, por exemplo, é rememorada brevemente nos trechos:

A Jurema é minha madrinha, Jesus é meu protetor/ A Jurema é um pau sagrado onde Jesus orou”.

O ponto é um dos mais relacionados à religião e exemplifica a característica da prática. Você há de admitir que o Catimbó Jurema também é poesia. Quando se lê: “Jurema é ciência nobre, Manacá, nobreza pura”, o que você interpreta?

Não contente, quem inventou a letra destrincha a realidade do que é viver o Catimbó no mais puro sentimento. Nos trechos a seguir, em que se lê:

“No Rio de São Francisco eu mergulhei e fui ao fundo, fui aprender ciência para poder andar no mundo / Os trabalhos da Jurema todo mundo quer saber, é como segredo da abelha, trabalha sem ninguém ver”.

A vivência, a descoberta e o respeito aos desafios e mistérios do Catimbó são essenciais. Os pontos de Jurema narram trajetórias, arte vívida e cotidiano.

“Esses pontos foram passados de geração em geração, trazendo forças encantadas e o poder de cura. Esses pontos também podem ser rezas, súplicas, pedidos. E esses lírios fazem parte da cerimônia de Jurema do início ao fim. Chego a dizer até que a música é uma religião à parte. A musicalidade é algo que nos move, nos alegra, nos emociona”, declara Pai Léo.

Como essas músicas são compartilhadas oralmente de pai para filho, de filho para neto, como elo de conexão e cultura, é importante lembrar que as cantigas podem mudar a forma como são cantadas dependendo de como cada família regente de casa de Jurema aprendeu com seus mais velhos. Algumas casas têm o costume de cantar ao som de palmas e maracás, sem a existência do tambor, seguindo suas tradições familiares.

E o Catimbó consegue ser ainda mais enigmático quando se trata de contar histórias por meio de canções. A mestra Maria Luziara, considerada a primeira mestra da Jurema Sagrada, é um exemplo de como esses pontos podem reviver e perpetuar histórias que atravessam séculos. 

A versão mais aceita pelos adeptos do Catimbó é que Maria Luziara da Conceição, nascida na Bahia em 1808, chegou ao Brasil com a corte portuguesa junto ao seu pai, João Grande. Sua vida e os acontecimentos que marcaram sua trajetória são retratados em diversos pontos do Catimbó, mantendo viva sua memória presente.

Quando moça, sua beleza encantou o Rei Dom João VI, que, ao voltar para Portugal, obrigou Luziara a morar no bairro do Espinheiro, em Recife/PE. Antes da viagem de volta a Portugal, Dom João VI teria presenteado Luziara com muitas joias, as quais ela perdeu no caminho para Pernambuco, por volta de 1821. Essa história é mencionada na cantiga:

Cadê o meu colar de ouro que o homem casado me deu? Na passagem do riacho, Maria Luziara perdeu Ela perdeu, perdeu a sorte que o macho lhe deu.”

Em Pernambuco, Maria conheceu Manoel Quebra Pedra e Zé Pelintra, hoje entidades mestres do Catimbó. A história também conta que Manoel Quebra Pedra comprou alguns hectares de terra na Serra da Borborema/PE e entregou-os de presente a Luziara, que passou a criar gado para sobreviver:

“Na cidade da Borborema tem uma cidade encantada [...] Que campos tão verdes, vejo o meu gado todo espalhado Estou na mesa, sou da Jurema, venho ajuntando meu gado Meu Deus, valei-me, aqui nesta ocasião Mas ela é Maria Luziara, a princesa do mestre João.”

A Mestra, que adora girassóis e tudo que é belo, encantou-se embaixo de uma Jurema, transformando-se na mais bela flor da Jurema Preta. Hoje, Luziara é Mestra do juremeiro Pai Eduardo, um dos representantes da Casa do Ouro. Através dele, presenciei-a cantando em voz mansa e gestos delicados, enquanto sorria com fineza. Em certo momento, pude abraçar a princesa do amor, como é carinhosamente lembrada por quem tem o merecimento de conhecê-la.

Outra Mestra muito querida no Catimbó é Maria Amélia. Conheci Amélia em uma de minhas visitas à Casa do Ouro. Incorporada no juremeiro Pai Léo, a Mestra usava as cores verde e dourado com muito brilho. E mais brilhante que as roupas e joias que usava, era o sorriso que ela esbanjava.

Amélia demonstrou ser uma Mestra simpática, comunicativa e de bons recados. Ela abordou assuntos que eu vivia naquele período, deixando-me incrédula com tamanha precisão e assertividade em suas palavras, enquanto me confortava em seguida. A Mestra parecia saber tocar as pessoas.

Muito amada, todos à sua volta sorriam e queriam estar perto, presenteá-la com flores e pedir conselhos amorosos. “Quando falamos de Jurema, falamos de rainha encantada. Por quê? Porque a Jurema traz esse sagrado feminino, a força feminina aqui para a terra. Amélia representa sentimento. De origem alemã, Amélia, quando viva, morou em Recife na época da colonização. Em busca de liberdade, ela passou a viver nas noites livres no Mercado São José, mercado público de Recife. Quando Amélia desencarnou, ela voltou como uma senhora Mestra do Catimbó, trazendo sempre uma mensagem de amor próprio para as mulheres”, conta Pai Léo.

As toadas das Marias, como tantas outras, exemplificam como os cânticos resgatam a memória das entidades e de Encantados do Catimbó Jurema. A musicalidade é um aspecto central da prática, servindo como meio de comunicação, louvor e transmissão de conhecimento.